Selo Ecetera

Letras et cetera - Revista Digital

Ode para uma odalisca

O convite vem duma voz estriada de emoções resolutas e de solavancos de atrapalho, é longínquo, ou vem de perto? A musicalidade é impessoal, como um artigo ainda não inserido em jornal, mas adivinhado no espaço para ele destinado, o tom não é pedinte, talvez o resultar dum dia de insónias no estaleiro social, que chega aos meus ouvidos como uma doce súplica.

Aninha-te na minha alcova
não me deixes no álgido aposento
nua de sussurros...
o corpo em espiral intumescido sem planos de desova
O silêncio é um distúrbio que não aguento
como o mar engodo de onda alta e de funda cova
os meus peitos clamam barulhos e murros
e o meu ventre é uma eira que encova.

Caricias possíveis de lábios, ou mãos multiplicadas, como os cabelos dum cometa em parque de abastecimento, deitado.
Deita-te a meu lado, olhemos pelo telhado de vidro rasgado, as estrelas que contaremos assim prostrados. Nada mais peço que a tua quente companhia, que me ajudes no arrumo da contemplação do céu. Os meus olhos estão desajustados, sozinha, a visão que obtenho, é a de um espaço côncavo, sem linhas de leitura, minha continua tortura, nascida do último naufrágio.
De quem foram porções e testemunhas.

O apelo sai duma tela, onde riscos compõe um quase distinto rosto
que se sobrepõe ao resto.
Uma esquisse, envolta de roupagens fraldiqueiras
no descerrar dum corpo composto
de sedosas carnes brejeiras
sem palpites no apresto.

Estende-te a meu lado, olhemos na mesma direcção e, captemos cada um no seu olho brincalhão, o reflicto da lua cheia, que dos teus para os meus eles ressaltem, ali os farei dançar como homenagem do teu concordar.

Deixa-os passear nos meus seios
como espevitados serpeios
até escorregarem e encontrarem o alto da meia
que distraída, deixo mostrar na coxa perdida na teia
de sedas dispostas em diagramas
tal formiga branca no tosco breu, com o pudor em chamas.

Regela os meus preceitos de manda-chuva cerimonial. Faz dos lençóis, folhas de parreira e da enxerga um arraial. Que o fogo estoire e o mobiliário dance, como figurinos de carnaval, até que o dia apareça deleitoso, como um cândido enxoval.
Estira-te a meu lado, sem vínculo assinado.

Apenas a confusão duma aliança
nos toques de dedos em cabelos passeantes
como os meus ancestrais o faziam nos baptismos serenos
longínquos antes
com pedras nos sovacos morenos
que me acossam ainda nos dias de temperança.
Os festins nómadas, ao som de liras transparentes
que tocavam cavaleiros aprestados em cavalos de olhos luzentes

Acama-te a meu lado, com o cheiro do teu corpo, abafarei o fado antigo, comporei com os meus toques ardilosos, uma canção de acalento, que na alcova dançarei contigo.
Olha o teto ferido pelos gritos amargos de outro terço, deixa fluir o veio dos teus pensamentos, que encontrem os meus tempos de criança e, por um curto espaço de tempo, joguemos à macaca, ou à cabra cega e, no inocente jogo, rouba-me o beijo, que hoje o teu longínquo poiso nega.
O imploro vem dum espaço físico, ou nasceu do meu parido desejo carnal? Como um assunto fundador de romance medieval.

Vem para o meu lado; agora a voz é mais vagabunda
quase um bafejar de barregã devassa
que uma corrente de cintilo as pernas inunda.
Recebo-to na minha cidade, ou na minha aldeia, um lauto pôr de argamassa
na minha mais rica escudela.
Levo-te a passear e tomo-to as mãos, que arrastarei para uma improvável viela

Que guarde ainda, o grito de qualquer mãe-d'égua saudosa de condestável, onde a luz de alguma candeia, deixe refulgir o fantasma do último amor acabado, ao som duma velha guitarra, que deixa escorrer o estribilho na calçada, depois do fado abafado.

Vivamos por instantes os lamentos das almas feridas, implorando que não sejam as nossas.

Vem para o meu lado!... Parecia ainda suplicar a voz, como um já esbatido timbre, logo que possas. Sei, que não sabes onde moro, nem quem sou!... Sou odalisca de outra era, que se desvanece de dia e, de noite te espera...

PS: ensaio, os tempos, os espaços, os argumentos e os personagens, são voluntariamente redigidos em termos anacrónicos. Os três pontos no final, significam que o ode é evolutivo, portanto um texto vivo.

Montefrio (Fernando Oliveira)

1 comentário:

cristinasiqueira disse...

Oi Fernando

Erotismo,sensualidade,beleza.
O tom do Amor na voz do poeta.
Maravilhoso!
Tocante!

Com carinho,

Cris