Selo Ecetera

Letras et cetera - Revista Digital

Testemunha

Olha.
Viste a bandeira abismada no campo de batalha
tão desfeita que não sabias a cor
nem decifravas o sotaque dos gritos de dor.
Era um vento tão forte que era mais que borrasca
e sucumbiste
e a lama foi o teu panteão.

E eu estava lá abrigado na trincheira alagada
chorando por ti.
Não te vi morrer campeão
mas como um prato vil que a terra come
como te deu a panela do sustento.

Tu que eras a humanidade
a erva que pisavas eram os teus corpos
e as preces que ditavas eram os teus medos.
Eu apenas era o espectador na sala escura
que olhava a tua evolução
acção e contradição.

Olha.
Viste o sangue jorrar nos passos dum tango
e o olhar de êxtase na face argentina
da mãe dum novo fado.
Eu estava lá ouvindo a música plangente
que se misturava com as dores do parto.

Eras tu a humanidade
que na noite misteriosa da catedral
cantava as paixões agarrado à corda vertical
- em versos mudos de submissão.
Eu apenas olhava a destreza dos teus saltos
assemelhando-se à dança dos chimpanzés.
E nos teus lábios a tristeza da condição.

Eu sou apenas a névoa dos teus olhos
a hipótese das tuas lembranças
a imagem cravada na janela dos teus pensamentos
a ideia fixa de que estás só
como humanidade que és.

Eu não sou o teu sono nem o teu rumo
e se o céu é o teu chapéu
eu sou teu amigo no cortejo que te ameaça.

Olha.
Viste o acidente do teu planeta
aquela bola verde e azul que o sol coze e as nuvens inundam.
Sentado numa pedra à beira dum regato
eu ouvia uma ninfa de água doce tocando flauta
quando te vi (tu) o aleijadinho do infortúnio calculado
nos tapetes da habilidade manufactureira
pedindo amnistia para o seu próprio pecado.
Com uma mão preta e um braço que não tinha mão.

Insulto da natureza ou erro da humanidade!
cada vez que estendia a minha
nada vias.
Eu não tenho mão
sou apenas a sombra que não podes apanhar
com a mão válida.
Pudera com a inválida!
Sou (tu) sem saberes
e como tal não me podes abraçar.

Eras tu a humanidade
e eu não era que a jurisdição da espécie que te criou
um enigma que nem te sombreia
nem te esgana o espírito.
Não sou a canção da tua manhã ensonada.

Olha.
Viste a borboleta voar no tempo da sua morte
a flor que não suportando o seu próprio perfume
se suicida.
Viste o grão rezado em todas as missas apodrecer no sótão
e o santificado trovejar nas veias do inocente.

Eu apenas sigo certos passos e o meu caminho também é cego
não roubo o leite das crianças
e o meu rosto não se pode ler.
sou (tu) sem saberes que a humanidade tem mais alguém.

Olha.
Viste a etiqueta que o teu avô deixou
e que dizia
sê!
Eu já não sou.
Eu estava lá quando ele assinou
com a cabeça irracional da velhice.
Vivi aquele momento de louquice
do senil que fora humanidade.
Eu não era que o acréscimo imaginário
o estrogénio do aspecto humano.

Se um dia morreres
nem sequer saberei que estiveste
na mesma humanidade que eu
porque tu, eras eu.

Tu que nem sequer foste o meu sucedâneo
nem a minha sombra nem o meu espírito.
Tu que apenas foste (fomos) nas bordas da existência
um sucedimento assente entre nós
sem que fossemos humanidade inteira.

Olho.
Vi o enterro da humanidade
naquele dia assombroso que o sol bebia a noite
e a lua beijava a brancura.
Naquele dia de pura loucura
morri
e tu por caridade fizeste cinzas de ti.

Se amanhã nascer não me lembrarei de ti.
Não procurarei na água a mensagem que lá deixaste.
Deixarei que ela corra até a foz da foz.
E quando não houver mais água.
Sem água não haverá mais história.
E nem eu nem tu nos lembraremos de nós.

Montefrio (Fernando Oliveira)

O moço frívolo e a plebeia finada

O moço ainda é puro como as águas da primeira latência.
Sedoso, intangível e ao mesmo tempo palpável.
Afanoso na procura do concurso de anuência.
Que o leve a campos de prélio de onde brote condestável.

Não me deixes chorar a tua morte obscura
Reabilita a tua face de cera, afasta a mortalha
Vingarei o pecado da tua nascença impura
Levo a teu avivar para as praças de batalha.

O mancebo é grácil; e o derriço exorbita-lhe os anseios. A exânime amante, que lhe envia olhares mudos, oculta-lhe a razão.

De ti farei princesa, pelejarei até me escoar, braços e olhos sem receios. Na volta triunfante, me ofertarás os louros vertidos do teu coração.

Não interpeles os deuses,
nem no teu sono me vejas derrotado.
Despe-te do inerte pavor,
acende movimentos nos olhos delicia.
Encoraja o antagonista,
que o meu fruir seja gládio coroado.
Do meu corpo primaveril,
jorram veias, que são lagos de perícia.

Arrebatarei na terra fera
à fêmea bera, os predicados de realeza.
Na torre abjecta, enclausurarei a abelha-mestra,
negra, vil e vencida.
Nos conventos abertos,
os sinos louvarão o teu evento de princesa.
E no altar mor vestido de efémero herói,
beijarei o teu rosto sem vida.

Poefilo

Montefrio

Ode para uma odalisca

O convite vem duma voz estriada de emoções resolutas e de solavancos de atrapalho, é longínquo, ou vem de perto? A musicalidade é impessoal, como um artigo ainda não inserido em jornal, mas adivinhado no espaço para ele destinado, o tom não é pedinte, talvez o resultar dum dia de insónias no estaleiro social, que chega aos meus ouvidos como uma doce súplica.

Aninha-te na minha alcova
não me deixes no álgido aposento
nua de sussurros...
o corpo em espiral intumescido sem planos de desova
O silêncio é um distúrbio que não aguento
como o mar engodo de onda alta e de funda cova
os meus peitos clamam barulhos e murros
e o meu ventre é uma eira que encova.

Caricias possíveis de lábios, ou mãos multiplicadas, como os cabelos dum cometa em parque de abastecimento, deitado.
Deita-te a meu lado, olhemos pelo telhado de vidro rasgado, as estrelas que contaremos assim prostrados. Nada mais peço que a tua quente companhia, que me ajudes no arrumo da contemplação do céu. Os meus olhos estão desajustados, sozinha, a visão que obtenho, é a de um espaço côncavo, sem linhas de leitura, minha continua tortura, nascida do último naufrágio.
De quem foram porções e testemunhas.

O apelo sai duma tela, onde riscos compõe um quase distinto rosto
que se sobrepõe ao resto.
Uma esquisse, envolta de roupagens fraldiqueiras
no descerrar dum corpo composto
de sedosas carnes brejeiras
sem palpites no apresto.

Estende-te a meu lado, olhemos na mesma direcção e, captemos cada um no seu olho brincalhão, o reflicto da lua cheia, que dos teus para os meus eles ressaltem, ali os farei dançar como homenagem do teu concordar.

Deixa-os passear nos meus seios
como espevitados serpeios
até escorregarem e encontrarem o alto da meia
que distraída, deixo mostrar na coxa perdida na teia
de sedas dispostas em diagramas
tal formiga branca no tosco breu, com o pudor em chamas.

Regela os meus preceitos de manda-chuva cerimonial. Faz dos lençóis, folhas de parreira e da enxerga um arraial. Que o fogo estoire e o mobiliário dance, como figurinos de carnaval, até que o dia apareça deleitoso, como um cândido enxoval.
Estira-te a meu lado, sem vínculo assinado.

Apenas a confusão duma aliança
nos toques de dedos em cabelos passeantes
como os meus ancestrais o faziam nos baptismos serenos
longínquos antes
com pedras nos sovacos morenos
que me acossam ainda nos dias de temperança.
Os festins nómadas, ao som de liras transparentes
que tocavam cavaleiros aprestados em cavalos de olhos luzentes

Acama-te a meu lado, com o cheiro do teu corpo, abafarei o fado antigo, comporei com os meus toques ardilosos, uma canção de acalento, que na alcova dançarei contigo.
Olha o teto ferido pelos gritos amargos de outro terço, deixa fluir o veio dos teus pensamentos, que encontrem os meus tempos de criança e, por um curto espaço de tempo, joguemos à macaca, ou à cabra cega e, no inocente jogo, rouba-me o beijo, que hoje o teu longínquo poiso nega.
O imploro vem dum espaço físico, ou nasceu do meu parido desejo carnal? Como um assunto fundador de romance medieval.

Vem para o meu lado; agora a voz é mais vagabunda
quase um bafejar de barregã devassa
que uma corrente de cintilo as pernas inunda.
Recebo-to na minha cidade, ou na minha aldeia, um lauto pôr de argamassa
na minha mais rica escudela.
Levo-te a passear e tomo-to as mãos, que arrastarei para uma improvável viela

Que guarde ainda, o grito de qualquer mãe-d'égua saudosa de condestável, onde a luz de alguma candeia, deixe refulgir o fantasma do último amor acabado, ao som duma velha guitarra, que deixa escorrer o estribilho na calçada, depois do fado abafado.

Vivamos por instantes os lamentos das almas feridas, implorando que não sejam as nossas.

Vem para o meu lado!... Parecia ainda suplicar a voz, como um já esbatido timbre, logo que possas. Sei, que não sabes onde moro, nem quem sou!... Sou odalisca de outra era, que se desvanece de dia e, de noite te espera...

PS: ensaio, os tempos, os espaços, os argumentos e os personagens, são voluntariamente redigidos em termos anacrónicos. Os três pontos no final, significam que o ode é evolutivo, portanto um texto vivo.

Montefrio (Fernando Oliveira)

Femme

Senhora

Vos sois a minha trindade física
o beijo
o abraço e o concúbito

Nos vossos braços
o meu peito se deleita

Os vossos beijos são pétalas lanígeras

O vaso
recipiente de anarquias luarentas

Esperai na alcova pela minha mónade

Senhora diáfana
de somático concreto

Montefrio

À minha amiga " castanha "

Lembro-me!...

De um dia estarmos juntos
eu e tu
o cão e a árvore

Nada mais contava que o nosso conexo

Não haviam céus mansos
nem rios bravos

Só a árvore e o cão
mais tu e eu

Haviam romarias ao redor de nós
que enchiam os ares de trovas celtas
que o bombo e o acordeão sorviam

Mas tudo isso era outro mundo

Apenas tu e o cão
a árvore e eu

Como numa ilha coberta de guitarras mansas

Quão bela eras
na primeira apalpada

Morena de assar
tal fruto de galhos tenros
coberta de picos
que o cão amansava

No vestido despido
depois só veludo

O sol descaía como um triste entrudo
quando te dispus na fogueira ansiosa
onde tu pulaste como uma ruiva bravia

Só tu e eu
o cão adulterava a árvore!...

O patusco tremor na primeira trincada
um gole de vinho
na goela já quente

E o cão que ladrava cheio de ciúmes

Castanha amiga
como eras moscada

No São Martinho do nosso todo dia

Montefrio

Aprendiz feiticeiro

Semeei um campo de deusas
e outro de diabretes
e não colhi nada
Que angústia danada

Nem ventos bentos
nem maus ares
Nem sequer bendizeres
ou azares

Que camponês sou eu
Talvez maltês
Que ensopou a semente na piada
E a escondeu nalguma vasilha revês

Onde só florescem fumos de lembretes

Montefrio

A giesta de Montefrio

Minha Senhora - que não conheço - honra-me a vossa homenagem.
Se sou cruel monte,
preenchido de ríspidas torgas que bamboam,
na aragem das estações, que se sobrepõe em feixes de tempos, com inépcia.

Sou um organismo velho, com a antiga Grécia.
Já sem escolhos de descoberta... as minhas ilhas são áridas
e as minhas faces espadas de actas revolvidas,
peles esquálidas,
mal estendidas.

As minhas barbas; são quase o tapete que vos leva às praias do vosso gozo
- diletante feitura -, na vertente abrupta, que espera espaço de pouso.

Resta-me o vento, que açoteia e varre o meu cume
- de quente que era -. Sou frio como a manjedoura do ciúme
oferta à criança,
que animais escondiam,
porque sem pai,
a mãe,
remava na vergonha do provável incesto.

Roma e Atenas. Era tudo terra de manifesto.

E foi no meu monte álgido que enterra a cruz e cai.
Morre na carne e, nasce no dogma de profundas cicatrizes.

Carreiros infames, lençóis crus de meretrizes.

No repasto universal. Minha Senhora.
Sou encovado, como o meu pai primeiro, antes de ser levantado
por qualquer trejeito dum diabo ou dum deus.
Que me fez monte inteiro.
Afilhado dos Pirinéus.

Nada mais me honra que a vossa referência ao monte
do cristo literato. Chorado ou atado.

Sou a ante-fonte.

E da sua cruz de tormentos algentes...
não quero. Nem os seus espinhos, nem os seus poentes.
A minha farrapada, é de ser monte.
A dele, era de ser fonte.
- A cada um a sua cruz, minha Senhora
chorosa madalena, que ninguém namora -.

Sou ainda poeira de mãe de peitos montanhosos
que morreu quase ignara.

Como o vulgar dos tuberculosos.

Viaje nos meus pés, ignore os meus contrafortes.
Sou encabeçado, abelhudo e sem sortes.

Àlgebra, Senhora... sou ainda, sem soma. Nos pedregulhos
que atormentam os vossos pés luxuosos embrulhos
nas minhas esmagadas. Sem culpa, - fráguas -
Onde recebo então as vossas pragas, como baldes de sujas águas.

Ainda no seio de qualquer dos meus montículos,
passeiam restos de antigos animais.

Dizem que sugo o sangue das bestas, como os arcaicos canibais.
Não creiais, Senhora. São disparates da era moderna.
No fundo. Não sou que uma falhada cisterna.
As águas escorregam-se-me para sopés doutros sonhos.
Recebo apenas como carinhos. Sopros de fantasmas medonhos.

Sois cruel, Senhora. Tratando-me de antepassado!.
Antepassados eram os bois da minha avó que só lavravam o terreiro já lavrado.
Cornudas bestas, que mataram o amor que lhes pedia demasiado suor.

É do mundo a poeira do monte frio.
No meu seio, não espere Senhora. Que golfadas de calafrio.

Ah, Senhora, minha Senhora, doce Senhora.
Quisera eu ser Creta.
Alta como o Zefos que vos espreita na suspeita do pecado Celta.

Se voareis dos meus altos, para os baixos buracos impuros
de abraços pesados como murros.
Tende cuidado senhora.
Levai aselhas de chumbeira.
Para cairdes mais depressa, na fornalha desta aviltada eira.

Envio-vos poeira solta, como folha de recados.
Fechai os olhos ao soletrar os meus versos falhados.
Nas minhas mãos. Possuo uma encarniçada giesta gelada.

Afastai-vos do meu alcance, podereis levar vergastada.
Senhora de desafio e brio.
.
Que é dona de Monte Frio

Montefrio

Morre como um homem

Precisamos de despertar todas as manhãs
sem remédios

Precisamos de acordar embalados de impetuosidade
com o culto nos dentes
e a boca discreta

Com a razão embebida de ousadia
e a loucura nos braços

Esquecer os bailes da noite seguinte
dançar na escuridão do espaço que não reconhece o corpo

Não pensar na prostituição

As crianças ainda não acordaram
e a mãe não tem leite
nem pão

Precisamos de despertar todas as manhãs
sem remédios
acordar embalados de raiva

Com as orelhas moucas
e o nariz galanteador

Esquecer o turbilhão da noite seguinte
partir as rochas que alimentam o cadáver

Não pensar na redenção

Precisamos de acordar para procurar o pão
que temos de dar

Aos grãos que semeamos
nas trompas dum amor tão belo que nos fez deitar na ilusão
dum dormir calmo
e um levantar num lago de luz fresca com algas de união

Precisamos de despertar todas as manhãs
sem remédio

Morreremos com sono

Um sono imenso
enleado nos sonhos enterrados
nas fibras da corda do nosso destino

Como nos pediram

Montefrio

Se és filho de antigos

Se és filho de antigos, saibas que houveram mais antigos;
antigos de antigos, até chegar a Jápeto, parente próximo do Caos.

- E não és senão um demais
uma enzima do acaso
que podre volta para o cais
por se ter esgotado o caso -

E o caminho que fizeste é o traçado pelos teus pais, pelos pais dos teus pais e tantos pais que jamais saberás os teus.

Até chegar a Jápeto - que dorme nos braços de Hades, que é correctivo do Caos -

- E não foste que artefacto
uma lousa com sinais
ténue faísca do facto
donde a causa era demais -

És filho de Géa como a cobra, o olho-de-boi e o escorpião, como os indómitos insectos; o teu espelho feminino e os calhaus que cobrem a tua podre Pandora

- E não és que uma coisa
metamorfoseada em banal
uma régua que em ti poisa
ínfima virgula num jornal -

És filho de deuses se fores filho de antigos, que foram filhos de antigos, e eram deuses;
farás deuses como te fizeram.
És homem-deus, como os deuses foram homens serás antigo,
como os antigos foram deuses

A tua existência espalha-se no Chronos, de metamorfose em metamorfose, segundo a sina das três Graças.

Se és filho de antigos, como os antigos, és idiossincrático; marinheiro ou fura-vidas, juiz ou vinhateiro.

E a tua irmã é a deusa do sol, da poupança e da exuberância, da beleza e da discrepância
com quem casarás e farás deuses modernos que advirão antigos, para aqueles que são modernos.

Que serão deuses e deusas, que advirão ovos de Pandora
e darão lugar a outros deuses,
até mais não haver ecos, na caixa de Pandora.

Que perderia a graça, se mais houvera.

Se és antigo, filho de antigos, tão antigos, que as tais Graças; Eufrosina, Aglaé e Tália, que eram as deusas do banquete, da dança, de todas as diversões sociais e das belas-artes. Que eram tuas antigas mães.

És antigo filho destas graças.

Então és filho de antigos, imortal, pai e mãe.

Deus filho da antiguidade.

Montefrio

A cabeça da senhora

Senhora

Se fosse piloto de avião
despenhava-me na vossa cabeça

No risco que desenhais
nas manhãs de preparo

Seria o espião dos vossos pensamentos

Nos cabelos bondosos em que me despenharia
uma causa perfumada e acolhedora

Transformava-me em piolho

Informava o controle de que não havia mais voo
que tinha pousado entre uma testa e um fim de nuca

Vedes o panorama
senhora
Indultar-me na sua crista de mulher

E ali morar entre os escolhos do acidente
na zona mais sensível do vosso casco

Depois passear no vosso corpo piloso

Adoro os pelos das mulheres
pediria que nunca lavásseis a cabeça

Sou alérgico ao sabão

E se um dia senhora
ficásseis careca
Levantava novo voo
para outro toutiço

Entretanto
teria reconstruído um novo avião

Comandante avisado vale por dois
e mulher careca não tem gosto de mulher

Gostaria muito de vós senhora
mas sem cabelos não

Guardai todas as moitas encabeladas
mas arredai o sabão

Preparai a cabeça senhora
fazei um belo carreiro

Já lancei o alerta
vou-me despenhar…

Montefrio

Madame

Senhora

se passardes para os lados dos meus domínios
e quiserdes deixar uma mensagem arrebatadora

Expressai-vos sempre
com muita delicadeza

A minha criada
é a lavradora dos meus escrutínios
que espera que lhe braceje a peitada
sempre acesa

Saibais
que é a vós
que amo

Egrégia Senhora

Montefrio

Aprendiz feiticeiro

Semeei um campo de deusas
e outro de diabretes
e não colhi nada
Que angústia danada

Nem ventos bentos
nem maus ares
Nem sequer bendizeres
ou azares

Que camponês sou eu
Talvez maltês
Que ensopou a semente na piada
E a escondeu nalguma vasilha revês

Onde só florescem fumos de lembretes

Montefrio

A bruxa e a lambreta

Nada é mais gentil do que uma bruxa irada
que perdeu a vassoura num liça de magia

Sem transporte
a barregã é mais acessível

Salvo a fradesca que olha o umbigo no baú

Carreira depois
na dádiva da amabilidade

A bruxa que era feia; e de má conferência
pôs uma meia
que lhe alinda a perna fina

Calçou uma lambreta com um lenço na nuca

Nada é mais sensual
que uma bruxa caduca
que rola a mecânica na procura do efebo
um poema no bolso
para assoar um só nariz
e uma malha de meia caída
como referência

É de vê-la agora estacionada no adro da igreja
com uma perna no guiador e outra no pedal

Até um padre dele
reza o acólito
ao vê-la assim

Mostrar a magia
que pensava bruxaria

Montefrio

Barro para a artesã

Senhora, antes de o amares
saibais!...
Não é uma gravura
do vosso quarto
Antes, esparzo, do vosso fito
aparto,
Que no quimérico, por ele
chamais

A semente
do vosso destino lauto
Dizeis
que é um excelso contagiar
o brandão
que alumia o vosso deitar

E o dele, sorriso
expansivo incauto

Guarde-se
dum improvável ganho
O mancebo
não é colher de estanho
Mas malga de barro fresco
a cuidar

Senhora
nas vossas mãos se entrega
Confeccione-o num ninho
sem refrega
E deite-o no seu ardente colo
a mamar

Montefrio

A senhora e o mostrador

Insigne senhora
serei frontal na minha petição

Não quero cilindros de massa
na casa do poeta

Agarrai os membros contíguos ao seu
coração

Descabelai a pinha
mas deixai aquele na gaveta

A minha cabeça é sonsa
precisa de ares musicais

Se ficar despida mas inteira
não ficará estroina

Poupai o predilecto
oferecendo-lhe verdadeiros ais

Num entresseio
ide à praça resgatar uma boina

Conspícua, mas nobre senhora
Poetas, poetas
amor à parte

A literatura é filha de árvores
de floresta caldeada

Vaga é a fama, amai o homem
deixai o poeta aparte

Não façais do amor teorema
e sereis bem honrada

Montefrio

A fada e o cabeludo

Ao mancebo já um tanto ou quanto recesso
aconteceu recentemente uma coisa engraçada
foi visitado por uma fada com varinha
que não é muito alta nem muito baixinha
mas que o pôs de tal maneira possesso
que todos os dias vê a auspiciada

Em reais jardins de fora, dançando nua
a varinha empoando elogios com pó inefável
que atinge no longe o cabeça-de-prego
e lhe transforma os cabelos de labrego
em fios de cometa que chegam à rua
e lhe fornecem um ar bem agradável

Criou um mar de palavras um rio de beijos
mágica como a musa tem duas pernas de meia
um lago de sorrisos uma cascata de abraços
dois pés em movimento para idílicos espaços
canta como uma diva toca pianos e realejos
é linda tem cabelos de oiro e olhos de sereia

Montefrio